Um dia na Venda da Giesta
xapim
Cai muita chuva lá fora, as lágrimas escorrem nos vidros das janelas.
Não foi assim que parti de manhã cedo a caminho do abrigo de montanha dos Amigos do rio Ovelha (AARO), sito em Venda da Giesta, serra da Aboboreira, para participar numa caminhada. Mas é neste estado que me proponho escrevinhar qualquer coisa que recorde para memória futura esta pequena viagem pela natureza e pelo Portugal que já foi.
Venda da Giesta não é propriamente um exemplo de abandono, mas tem já em muitas passagens alguns sinais de actividades que acabaram e que davam dinâmica a estes tipos de povoados. Em compensação vêem-se algumas casas novas e restauradas, um pequeno café, uma pequena capela, que a religião já foi pão, e um miradouro de onde se avista uma paisagem abrangente para um lado e agreste para o outro, mas sempre linda, cheia, e que não deixa o coração e a mente indiferentes, mais empedernidas que sejam. Para o lado poente pode se alongar a vista numa extensão enorme, vendo-se nitidamente os enclaves, em traços brancos, cobertos pelo nevoeiro que os rios e outros cursos de água mais pequenos fabricam. Paro o nascente a paisagem é de montanha, vegetação rasteira, poucas árvores, que os incêndios levaram as outras, e penedos enormes gastos pela erosão e pela história, questionando eu sempre quem os pôs ali, tão grandes e em posições tão cómodas e tão bem encaixados que não cansa olhar... Grandes discussões com o Kim, crente nas suas teorias e tão descrente na minha sabedoria: foi o mar, foi a erosão, foram as catástrofes, foi a água... Eu sei lá, quem acabou com os dinossauros também estilhaçava grandes penedos e os punha assim em bocados dispersos ou harmoniosamente amontoados! Ou os gigantes de antanho, quando bebés, brincavam às pedrinhas e deixaram-nas assim ao acaso para os vindouros pensarem e discutirem a sua origem. Posto isto, melhor que os registos fotográficos, uma passeio descontraído num lindo dia de sol por aquela zona confirmará a pobreza da minha descrição perante a realidade que, demasiado ambiciosamente, tentei fazer o leitor imaginar.
Ao sair de casa dei de frente com um dia pintado de manhã fria de inverno, as árvores desorientadas no meio do nevoeiro que abarcava tudo numa pressa avassaladora. Peregrino que me prezo, sei no entanto que a esperança nos mantém vivos e o paraíso está sempre para cima, ou nós não olhássemos para o alto quando dele falamos. Como era montanha o destino de mais uma viagem dos cAmiNhEirOs de MerdA, eu sabia que o sol nos esperava de braços cada vez mais abertos conforme nos fossemos aproximando do destino.
Quadro pintado, o sol prometido, o Xapim e o “irmão” Leitão já juntos desde o Marco com o “judeu” Abraão, faltava o (agora também) “místico” Kim, carregado com a sua Nikon curiosa e as suas novas mensagens de sábios e profetas, para completar o quadro e fazer com que fôssemos realmente de MerdA.
Caminhar não tem história, é pôr um pé a seguir ao outro com um destino e um objectivo, se não formos loucos. Os nossos antepassados mais longínquos já caminhavam constantemente sempre á procura de alguma coisa, e nem homens se chamavam ainda! É o que se diz, o que se faz, o que se comunica, o que se partilha que dá sentido a esta actividade. E é disto que quero e gosto de falar, ou escrever neste caso, mas já vou em 572 palavras de rodeios e não consigo pegar no fio da meada.
Também não será importante, cada um dos muitos caminheiros fez a sua história neste percurso, guardou as suas memórias, teve as suas vivências, conviveu e partilhou com os outros. Cada um fez o seu próprio risco no mapa de vida lhe está destinado percorrer.
O almoço e o magusto, tão carinhosa e esforçadamente preparados pelos Amigos do Rio Ovelha, foram a coroa de glória que culminou o fecho das actividades desta colectividade. As fêveras tão bem preparadas pelo “Rafael”, o vinho que nascia de garrafas e garrafões e gerava comentários e conselhos de vários entendidos, foram o mel depois das agruras depressa esquecidas. O “judeu” Abraão circuncidado, num gesto bíblico, pregava as suas anedotas para um grupo avantajado de pessoas que o cercavam e faziam das gargalhadas a sua oração. O “irmão” Leitão exercitava o seu humor fino com os acontecimentos, e o Kim dedicava-se à sua pregação ou… à Nikon. O feitor destas letras, perturbado por um turbilhão de pensamentos e ideias, ia percorrendo o ambiente fugindo dos percalços como um poeta foge do que lhe provoca saudade, como uma borboleta insatisfeita que poisa aqui e ali, deslocado por querer sempre mais e nunca estar satisfeito aqui… pois sabe que há sempre o ali. Coisas. E à volta toda a gente a divertir-se, as concertinas desafiavam-se, os pares rodopiavam, as castanhas ainda passavam de mão em mão… Faltava o bolo, o prometido, o aliciante, pensava eu até que pudesse ter sido desviado por um vírus qualquer, quando fui acordado e levado em mão até ao dito. Partilhei (e agradeci) o momento e o bolo com os amigos, “e era tudo muito bom” digo eu como Deus disse.
A nostalgia do fim misturou-se com o pôr-do-sol e a saudade da partida. É assim um peregrino, embora haja sempre mais caminhos.
Pronto, estraguei tudo como de costume…