O CÃO QUE LADRA NO TELHADO AO CÉU AZUL
xapim
Gosto de divagar devagar. Prefiro estar fora para me ver bem para dentro, estar longe para me perceber mais completo.
E foi assim que, sentado no meu posto de observação, que fica lá no planeta onde me refugio para uma visão mais alargada, pude ver que algum deus, ainda mal liberto dos braços de Morfeu, virou distraído uma lata de tinta azul que se espalhou pelo espaço. A tinta escorreu calma e uniforme e invadiu também aquele planeta que chamam de azul. Deu-me assim uma vontade enorme de ir visitar o lugar que alguém escolheu para eu viver e usufruir durante o tempo que a areia da ampulheta que me foi atribuída demora a mudar de compartimento. E eu cá vim, a voar em curvas e loopings como gosto de fazer quando o deus dos sonhos me põe durante a noite a desenterrar ambições de criança, num misto de barbatanas e ondulações de corpo, de asas e penas aerodinâmicas.
O colo que nos criou e amamentou é o lugar onde sempre queremos regressar. Sentimos um reconhecimento recíproco, um aconchego, um afago por dentro, sentimos que nos faz ter razão quando pensamos que é bom partir só para que depois a ausência aumente o sabor do regresso e do abraço.
Vila Boa do Bispo, é assim o nome de um dos colos que de vez em quando me acolhe. Onde sou eu, porque foi aí que brotei de corpo e alma, como uma planta brota com caule, folhas e uma flor que a define e lhe traça a classificação na ordem.
As primeiras palavras, as primeiras letras, as primeiras orações. E com isto os primeiros sonhos, aqueles que sonhava deitado no muro que limitava o mundo possível na altura, até ao pôr-do-sol daqueles fins de tarde de verão infindáveis. E não eram pequenos esses sonhos, já construía poisos lá para o meio das estrelas que se anunciavam com o aparecimento da lua.
E é bom voltar. Calcorrear memórias recordando a “mãe d’água”, aquela passagem na estrada ladeada por velhos muros e matas de grandes árvores onde uma mina assustadora escondia uma qualquer moura encantada. Ali mesmo ao lado a velha torre da igreja do mosteiro milenar, onde subíamos para ver a arte dos sineiros a tocar como convinha as melodias alegres ou tristes, transmitia-nos a segurança que advinha dos ensinamentos que o velho Padre Machado, na sua infinita sabedoria e paciência, nos transmitia dentro daquela imensa igreja. Os castigos carinhosos do prior, aquelas imagens inconfundíveis nas paredes e altares, a ambiência criada quando ele nos mostrava o “livro grande” com pinturas de glória que nos arrancavam óh’s! de espanto, a sandes de queijo nos intervalos, o afago individual na cabeça de cada um ao chegar, são uma herança na memória que cataclismo algum apagará nunca. Deu-nos firmeza de carácter, deu-nos segurança, exatamente a que sinto ao vislumbrar a avenida por onde tanto corri e ao fundo o mosteiro com a velha igreja de histórias e memórias.
Passando o coreto, onde nas festas ouvi as primeiras sinfonias (e que ainda hoje gosto que me acompanhem na escrita), vamos em direcção a outro ponto fulcral desta história de berço, o rio Tâmega. Mal começamos a descer o caminho (agora quase estrada) que os burros do moleiro Albaninho do Alto conheciam de cor e calcorreavam sozinhos e por onde, nos tempos idos, as velhas Volvo subiam a ronronar carregadas de granito, vimos ao fundo o rio engalanado nas suas margens luxuosas de verde e vaidoso no azul que o deus distraído espalhou pelo céu e deixou escorrer para as suas águas. As flores alinhavam-se pela beira do caminho numa procissão alinhada de cores diversas dizendo que não precisam de se preocupar para serem belas, como disse já há muito tempo um bom homem chamada Jesus. As campânulas erguiam-se altivas no meio das outras flores exibindo os sinos alinhados, as lanterninhas muito cor-de-laranja anunciavam-se num muro antigo, e a flor de abóbora chila exibia o seu grande altifalante amarelo de onde parecia que saíam os cantos dos pássaros festejando a passagem de dois caminheiros perdidos.
E o rio todo azul, espreitando de vez em quando por entre as flores e as árvores ou do outro lado duma rede de arame, ia-se apresentando cada vez mais perto.
Fechei os olhos. Os anos recuaram cadenciados até àquele tempo… e vi os burros do Albaninho acabados de chegar, pelo caminho estreito e pedregoso, junto à pesqueira. Os sacos do milho eram pesados como pesada era a vida de quem os transportava. Os moinhos, instalados em cima das pedras que dividiam o rio, trabalhavam à força da água que só queria seguir o seu caminho natural. A mó tratava dos grãos com carinho e, rodando sempre, fazia a farinha que havia de passar pelo forno de lenha e encher as mesas de pão e de felicidade. Os rolos espremiam as varas do linho que ia fazer toalhas para enfeitar as mesas e as cómodas duma casa portuguesa, com certeza. O Matruco mergulhava junto à margem e desaparecia por longos minutos, acabando com a espectativa dos curiosos ao fazer aparecer a cabeça já lá para o meio do rio. O Zé dos Copos, cigarro impávido no canto da boca, era parte do mundo desde que este existe. De olhos fechados ainda, vi-me aflito numa arriscada e inconsciente entrada no rio sem saber nadar, os pés a falharem, a areia a desaparecer… quase a gritar por ajuda, alguma deusa das águas me deu uma ajuda e eu, sem saber como, saí para a margem segura onde a vida rolava como se nada tivesse acontecido. Fiquei sozinho e mudo no meu pavor sem ninguém saber.
O ruído da cana que levava na mão arrastando-se na terra acordou-me e eu abri os olhos. Comecei a ouvir os cantos afinados e desafiantes dos pássaros, canta um aqui responde outro acolá. Os ramos mais compridos das árvores eram as pautas por onde liam as partituras. O rio continuava ao nosso lado, plano e azul, aqui todo aberto, ali protegido por uma fiada de árvores alinhadas.
Viramos costas ao rio, que agora já não tem histórias velhas para contar, e seguimos por outros caminhos que nos hão-de levar a outras histórias.
As flores continuaram a acompanhar-nos, agora civilizadas em vasos ou enfiadas nas paredes de pedra do caminho. Um último olhar lá para baixo a dizer um adeus ao rio, que lá estava comprido e azul no seu sossego indiferente. Uma fonte deitava água límpida para um pequeno tanque num ruído cristalino como ela.
À frente, no telhado duma casa velha, um cão preto ladrava desalmado ao céu todo azul.
Prometi que, ao regressar ao meu posto de observação, farei um desvio no meu voo para passar aqui no telhado da casa que tem um cão que ladra ao céu azul.